Reportagem: Marcos Robério de Freitas
Nas últimas décadas, poucos assuntos receberam tanta atenção na imprensa quanto às mudanças climáticas. Motivo de discussões, pesquisas e polêmicas, o aumento na frequência de eventos extremos tem um grande impacto na infraestrutura de saneamento, ao ponto de prejudicar diretamente o abastecimento e o tratamento de esgoto.
Períodos de estiagem prolongada e de chuvas intensas afetam a oferta de água e ameaçam o suprimento de recursos hídricos, à medida que enfrentamos um cenário de alterações ambientais cada vez mais imprevisíveis. Em 2024 já pudemos observar consequências, como os temporais que atingiram o Rio Grande do Sul; e o ano de 2023, que ficou registrado como o mais quente da história.
E em todos esses cenários, o ciclo da água está diretamente ligado. Com as mudanças climáticas se agravando, os sistemas de saneamento enfrentam uma série de desafios. Estudos apontam que com a perspectiva de elevação do nível do mar, 25% da população brasileira será afetada, ou seja, cerca de 42 milhões de pessoas que vivem nas áreas litorâneas.
Logo, diversas cidades brasileiras sofrerão com problemas relacionados ao gerenciamento ineficiente dos sistemas de água e esgoto — incluindo a falta de capacidade técnica para operar e manter adequadamente as infraestruturas de saneamento.
É bom lembrar que, quando falamos em saneamento, nos referimos ao conjunto de estruturas adotadas para o fornecimento de água potável, manejo adequado de esgotos sanitários, limpeza urbana e de resíduos sólidos, além do controle de vetores de doenças, como a dengue e a malária.
Conforme o sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), elaborado por 801 pesquisadores de 195 países, o Brasil sofrerá com uma série de extremos no clima. Ainda que parte do crédito seja de eventos como o El Niño, o ser humano colabora pontualmente com a emissão desmedida de gases que contribuem para o aquecimento do planeta.
“A questão atual é o quanto a atividade humana está acelerando esse processo, principalmente pela produção de gases do efeito estufa (GEE) e entre eles o dióxido de carbono (CO2). Com o acréscimo desses gases em nossa atmosfera aumentamos o nosso efeito cobertor, ou seja, aumentamos as temperaturas dentro de nosso planeta. Tanto da atmosfera, como da terra e oceanos”, comenta o professor Sergey Alex de Araújo, do Laboratório de Climatologia da Univali.
As cidades se tornaram os alvos mais vulneráveis desses eventos por concentrarem grandes grupos que dependem de estruturas como energia, transporte e saneamento, ou seja, mais sensíveis às alterações do clima. “O estresse hídrico, seja por enchentes ou secas prolongadas, trazem desafios igualmente graves. No primeiro caso há a proliferação de vetores de doenças como dengue ou mesmo a leptospirose. Já a falta de água pode diminuir os hábitos de higiene da população, e diversas doenças podem surgir, seja por via oral, cutânea ou respiratória, em todas sobrecarregam o sistema de saúde”, explica o engenheiro ambiental e sanitarista, Rodrigo Fortunato de Oliveira.
O mapa da organização Climate Central simula de forma interativa o aumento do nível do mar em várias cidades, caso as emissões de dióxido de carbono (CO2) ultrapasse 1,5ºC previstos no acordo de Paris. Ao utilizar o site é possível acompanhar como o avanço do mar impactará a região norte de Santa Catarina nas próximas décadas — no exemplo, o município de Penha, um dos destinos turísticos mais populares do Estado.
A área em azul corresponde aos locais que serão diretamente atingidos pelas águas com o aumento da temperatura em 1,0ºC. Em amarelo com o aumento de 2,0ºC.
A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), mostra que a região Sul possui uma tendência ao aumento da disponibilidade hídrica em 5% até 2040, isso permitirá uma maior frequência de cheias e inundações. Nos últimos cinco anos o município registrou 6 enxurradas, inundações ou alagamentos, sendo que 2,4% dos domicílios estão sujeitos a esse problema conforme dados do Instituto Água e Saneamento (IAS). Para essas áreas não há nenhum sistema de alerta.
Conforme o clima do planeta continua a se modificar, impactos sobre o abastecimento de água e o gerenciamento de recursos hídricos se tornam cada vez mais evidentes. “Já vimos isso várias vezes no oeste catarinense. Por vezes se recorre a captação de águas de menor qualidade impactando no custo do tratamento. Em nossa região tivemos uma estiagem severa em 2006 onde a cunha salina avançou sobre nossos mananciais. Alguns se lembram de chuveiros queimando por causa do sal, água salobra chegando às torneiras, desabastecimento”, completa o professor.
Mas não acaba por aí. Se por um lado os alagamentos e inundações são recorrentes, por outro, a insuficiência de recursos hídricos dificultará também o fornecimento de água para atender as necessidades básicas da população em determinados períodos. Por isso, a falta do recurso será uma outra constante.
“As pessoas têm que entender que o clima não é mais o mesmo. Estamos vivenciando vários cenários ao mesmo tempo, alguns com mais probabilidade, outros com menos. Isso exige adaptações significativas nos sistemas de captação, armazenamento e distribuição de água, bem como no tratamento e reuso”, diz Rodrigo Fortunato.
O gráfico meteorológico da Universidade de Basileia, na Suíça, mostra uma estimativa da temperatura média anual da cidade de Penha nos últimos 44 anos. A linha azul tracejada é a tendência linear da mudança climática. Como essa aumenta da esquerda para a direita, a temperatura é positiva, ou seja, as condições da cidade estão ficando mais quentes, de acordo com o serviço.
Já na parte inferior do gráfico estão as chamadas faixas de aquecimento. Cada uma representa a temperatura média durante um ano — azul para os anos mais frios e vermelho para os anos mais quentes. “No dia a dia, pelos dados obtidos por equipamentos de medição verificamos realmente um aumento na temperatura. Quando pensamos na região os dados indicam tendência de aquecimento (subida). Com o aumento da temperatura existe a possibilidade de alterarmos variáveis da atmosfera e assim as condições de precipitação, tanto espacialmente, como temporalmente”, reforça Sergey Alex.
Em muitos municípios a infraestrutura existente está se mostrando inadequada para lidar com essa nova realidade, levando a indisponibilidade de água potável. Se antes uma precipitação ocorria em média uma vez a cada 10 anos, é esperado o aumento em 1,5 vezes em decorrência de uma temperatura maior.
Com pouco mais de 33 mil habitantes, conforme dados de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Penha vem há anos sofrendo com a falta de água no período do verão. Ao longo da alta temporada a cidade recebe em média 150 mil visitantes, acometendo diretamente a capacidade de distribuição hídrica.
Lidar com esse desafio está pressionando a concessionária a se adaptar — incluindo investimentos maiores em infraestrutura, programas de gestão de águas e medidas de conservação. As mudanças climáticas estão levando a escassez de água em muitas cidades, tornando crítica a necessidade de sistemas de saneamento adaptáveis a condições atípicas.
É crucial analisar de forma adequada os potenciais riscos para evitar a implementação de medidas baseadas apenas nos acontecimentos presentes, o qual requer uma abordagem que combine ações a curto e longo prazo. Por isso, a adoção de medidas inovadoras e a busca por soluções no setor se tornaram uma questão desafiadora.
Algumas cidades brasileiras já estão se adaptando para conviver com essas mudanças, a exemplo do Rio de Janeiro, que formalizou uma parceria com a Nasa para monitorar o nível do mar. No Recife, áreas de risco estão sendo desocupadas, e em Fortaleza deve ser construído um lago subterrâneo para conter o avanço da água.
“Em Navegantes a restinga é um ecossistema muito rico que impede a erosão da praia e, de certa maneira, contém o avanço do mar sobre a cidade. Note que estou falando de uma medida para mitigar os efeitos do avanço do mar, não estou falando de reverter a situação. Frente às mudanças climáticas, o pensamento que temos é o de minimizar os efeitos desse problema, mas não revertê-lo”, explica Rodrigo.
Analisar os custos de resolução frente às mudanças climáticas é essencial para entender as consequências econômicas e sociais de resposta ao problema. Mesmo que os custos pareçam altos inicialmente, esses são frequentemente justificados quando comparados aos danos econômicos, sociais e ambientais.
Por mais que os investimentos necessários para construir e manter infraestruturas de água e esgoto não sejam significativos e as fontes de financiamento nem sempre suficientes. A implementação desses sistemas deve considerar a sustentabilidade do conjunto, desde a captação até o tratamento e disposição final dos efluentes.
O cenário de acesso a cada um dos serviços de saneamento no país mostra que há atendimento adequado de abastecimento de água potável para 57,7% da população, precário para 39,6% e não há atendimento para 2,7%. Entre aqueles que têm acesso ao abastecimento de água, 85,7% são por meio da rede pública com canalização interna. Poço ou nascente responde por 9,9%.
No caso do acesso ao esgotamento sanitário, 48% da população tem atendimento adequado, contra 48,7% precário e 3,3% sem o serviço. Ao falar da limpeza urbana e da coleta de lixo, 64,9% da população tem acesso adequado. O acesso é inadequado para 25,1% e a falta de acesso atinge 10%. A coleta diária de lixo atende 82,9% da população. A queimada ou destino incorreto corresponde a 8,2%.
Os indicadores declarados ao Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) em 2020 pelo prestador de serviços, mostram que Penha possui 94,32% dos domicílios com acesso à água, 2,38% com acesso a canalização hídrica em alguma parte do terreno e 2,27% sem acesso. Sendo que desse montante 28,85% é o índice de perda na distribuição.
Já o relatório Atlas Esgoto, elaborado pela ANA e concluído em 2017, evidencia que 75,78% de seu esgoto é manejado de forma adequada, por meio de sistemas centralizados de coleta e tratamento. Do restante, 16% são coletados, mas não são tratados e 8,22% não são tratados nem coletados.
O Brasil retrocedeu em mais de 60% das metas que integram os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), documento das Nações Unidas para um mundo mais sustentável e menos desigual até 2030. Os Objetivos abrangem quatro dimensões principais, sendo: social, ambiental, econômico e institucional.
A ODS 6 que assegura a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas as pessoas passaram a situações de retrocesso. Com isso, o documento destaca a urgente necessidade de se identificar a verdadeira situação de falta de saneamento básico no país, pois somente 25 cidades das 5.570 apresentam universalização do serviço.
Esse levantamento serve de referência quanto ao uso dos recursos hídricos e de saneamento básico, e das medidas que serão adotadas diante do excesso de água ou escassez do recurso. Todo o país já vive sob risco climático, sendo que os impactos já provocam perdas e danos em todos os ecossistemas, alguns dos quais, irreversíveis.
Ranking do Instituto Trata Brasil mostra que as 20 melhores cidades com acesso ao saneamento básico investem o valor de R$ 84,61 por pessoa. Enquanto as 20 piores o valor médio anual por habitante é de R$ 25,02 — representando uma variação de 238%. Com o Novo Marco Legal do Saneamento, alinhado a ODS 6, a promessa é investir a ordem de R$ 357 bilhões para garantir acesso universal ao saneamento básico até 2033.
A importância de ações urgentes não pode ser subestimada. É essencial investir em infraestrutura de saneamento que seja capaz de lidar com os desafios futuros, tanto em termos de adaptação às mudanças climáticas quanto de mitigação de seus impactos. Isso inclui o desenvolvimento de tecnologias mais avançadas para o tratamento de água e esgoto, sistemas de gestão integrada de recursos hídricos, e práticas de conservação e reuso de águas mais eficientes.
Políticas públicas são necessárias para promover a sustentabilidade e a resiliência dos sistemas de saneamento. Isso envolve desde incentivos para a adoção de tecnologias limpas até regulamentações mais rigorosas para garantir a proteção dos recursos hídricos. Crise climática não é mais o futuro; é o presente. Adaptar-se a esses novos desafios é essencial para garantir segurança hídrica nas cidades.
“São muitas questões que podem ser levantadas nesse sentido. Um conceito que falo aqui, mas já é aplicado no mundo todo nesse momento, é a questão dos refugiados climáticos. Aquela pessoa que teve que sair do seu local habitual por uma condição climática extrema”, finaliza Rodrigo Fortunato.
Investir em saneamento básico não é apenas uma questão de saúde pública, mas também de desenvolvimento econômico, sustentável e de vida. Populações mais saudáveis e ambientes mais limpos são fundamentais para o crescimento econômico e a estabilidade social a longo prazo.
Enfrentar os desafios do saneamento requer uma abordagem, que combine inovação tecnológica, políticas eficazes e colaboração de todos os envolvidos. Somente assim poderemos garantir um futuro em que todos tenham acesso a condições de vida dignas, independentemente das condições climáticas que o futuro nos reserva.